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Imagem: Sabesp |
Atenção: tem café na sua água. Café e mais: resíduos de
colesterol, hormônios sexuais, produtos industriais e uma
infinidade de substâncias microscópicas que passam pelo sistema
de tratamento das cidades brasileiras. Isso não quer dizer que a
água seja imprópria para o consumo. Segundo todos os padrões
internacionais de potabilidade, a água que chega às torneiras
dos brasileiros é limpa e está pronta para beber. O problema é
que, até hoje, a Organização Mundial de Saúde (OMS) não avaliou
os riscos para a saúde desses resíduos.
O alerta sobre a presença desses compostos vem de cientistas no
Brasil e no exterior e tem sido feito há cerca de dez anos. As
companhias de saneamento, no entanto, afirmam que não podem
fazer nada enquanto não existir uma legislação sobre o assunto.
Essas empresas seguem recomendações do Ministério da Saúde, que,
por sua vez, segue as orientações da Organização Mundial de Saúde.
Os pesquisadores da OMS ainda estão investigando o assunto.
Segundo a assessoria de imprensa do órgão em Brasília, não
existem informações sobre o tema no Brasil. Por enquanto nem ao
menos se sabe se essas substâncias fazem ou não mal à saúde e em
que concentrações poderia morar o perigo.
“Os cientistas começaram a pesquisar e a detectar pequenas
quantidades de substâncias perigosas na água que sai da
torneira, aquela que já passou por todo o sistema de tratamento
e está pronta para o consumo da população”, explicou o chefe do
departamento de desenvolvimento técnico e inovação da Companhia
de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), Américo
Sampaio, ao G1.
“Temos [esses] estudos, mas não temos um padrão”, afirma ele. “A
água que entregamos na casa das pessoas obedece todos os padrões
nacionais e internacionais de potabilidade. Ela é pronta para
beber. Mas não temos ainda uma legislação sobre essas
substâncias e sem ela não podemos fazer nada a respeito”,
explica Sampaio.
Entenda
Toda vez que você toma uma medicação, parte dela é absorvida pelo
seu organismo e parte é expelida, através da urina e das fezes.
Isso não desaparece magicamente no ar. Vai até o sistema de
esgoto, passa pelo tratamento e é liberado no ambiente. Depois,
é capturado novamente pelo sistema de tratamento de água, passa
por tudo e volta para a torneira da sua casa. Ou seja, parte
(uma parte muito reduzida, é claro) do remédio para dor de
cabeça que você tomou hoje pode voltar para sua torneira daqui
alguns dias.
É preciso explicar que estamos falando de uma parte muito
reduzida, mas muito reduzida mesmo, do remédio, café e afins.
“Estamos falando de uma concentração muito pequena”, explica o
professor Ivanildo Hespanhol, diretor do Centro Internacional de
Referência em Reúso de Água (Cirra) da Universidade de São Paulo
(USP). Mas não faz mal? Aí é que fica a interrogação.
É uma concentração muito pequena, mas que está aumentando ano a
ano, graças ao crescimento da população brasileira. E enquanto a
Organização Mundial de Saúde não tiver o que os cientistas
chamam de “padrão de potabilidade de fármacos” – ou seja, uma
definição do que seria considerada uma quantidade segura de
remédios na água – as companhias não sabem como agir.
“Nós estamos em um nível de pesquisa muito inicial sobre isso,
ainda restrito às universidades”, explica Daniel Cerqueira,
analista de controle de qualidade da Companhia de Saneamento de
Minas Gerais, a Copasa. “Que ocorre essa contaminação, ocorre.
Mas ainda não sabemos nem mesmo qual a metodologia mais adequada
para investigar esse problema”, explica.
Carlos Eduardo Pierin, gerente de controle de qualidade da
Sanepar, a Companhia de Saneamento do Paraná, concorda.
“Seguimos a portaria do Ministério da Saúde. Se a OMS ainda não
se manifestou, não temos nem como saber onde procurar.
Precisamos de mais estudos e para isso contamos com o apoio das
universidades. É assim que a coisa funciona”, diz Pierin.
A companhia do Rio Grande do Sul, Corsan, diz que não tem dados
sobre o assunto, mas que está se preparando para mudanças
futuras na legislação. "Não estamos alheios à possibilidade
de presença destes na água e seguimos nos equipando para, em
breve, desenvolvermos tecnologia para efetuar estas
determinações", afirma o engenheiro da empresa, Ivan
Lautert Oliveira.
É o mesmo que afirma o diretor de tecnologia da Sabesp, Marcelo
Salles. "A Sabesp acompanha os estudos da comunidade
científica nacional e internacional e cumpre os padrões da
OMS", declara. "A empresa aguarda o resultado dos
estudos que estão em andamento."
Estudos
As universidades estão atrás dos dados que as companhias
precisam. O professor Wilson Jardim, da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), estuda a presença dessas substâncias tanto
antes quanto depois do tratamento de água nas bacias que servem
a cidade do interior paulista. Seu estudo encontrou resíduos de
produtos industriais (dietilftalato, dibutilftalato e bisfenol
A), de cafeína, de colesterol e de hormônios sexuais (estradiol,
etinilestradiol e progesterona) na água tratada. O mesmo seria
encontrado em outras cidades do país, acredita ele. “Fizemos o
estudo em Campinas, porque estamos na Unicamp. Mas a mesma coisa
poderia ser vista em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília ou
qualquer outra cidade”, afirma Jardim. “O que você procurar,
você acha”, diz o cientista.
A preocupação dos pesquisadores é maior quando falamos dos
hormônios. Por exemplo, aqueles que existem em comprimidos
anticoncepcionais, que são expelidos pelo organismo de mulheres
e liberados na água todos os dias.
Por enquanto não se sabe se isso pode causar algum problema à
saúde humana, mas os hormônios em excesso já estão alterando o
desenvolvimento de espécies de plantas e animais nas represas.
“Temos encontrado peixes e sapos hermafroditas nas represas de
São Paulo e acreditamos que isso tenha a ver com o excesso de
hormônio presente na água”, explica o professor Hespanhol, da USP.
Os hormônios que bebemos não são reconhecidos como “inimigos”
pelo nosso organismo. Na verdade, ele acredita que as
substâncias têm todo o direito de estarem ali. O excesso
atrapalha o funcionamento de todo o corpo, podendo levar a
problemas de fertilidade tanto em homens quanto em mulheres.
Além disso, o excesso do hormônio feminino estrogênio, comum em
muitos tratamentos médicos e contraceptivos, está ligado a um
risco maior de desenvolvimento de alguns tipos de câncer, como o
de mama.
Tratamento
Se a má notícia é que não se sabe o quanto é preciso baixar o
nível desses fármacos, a boa é que quando se souber, já será
possível retirá-los da água. De acordo com Sampaio, da Sabesp, o
primeiro passo para reduzir essa contaminação é melhorar o
tratamento de água e esgoto que já está em operação. O professor
Wilson Jardim, concorda. “A curto prazo devemos atualizar a
tecnologia das estações de tratamento para limpar da melhor
maneira possível o esgoto bruto que recebemos, e, assim, reduzir
ao máximo a presença dessas substâncias”, afirma o cientista.
O segundo é mais complexo e exige uma mudança “política”, para o
pesquisador da Unicamp. “O Brasil precisa começar a tratar, de
fato, o esgoto. Nosso saneamento básico é extremamente
deficiente. Chega a ser vexatório o que se investe em saneamento
no nosso país”, diz o pesquisador.
Ivanildo Hespanhol, da USP, tem uma proposta para modernizar o
tratamento de água brasileiro. No Cirra, sua equipe desenvolve
membranas que prometem melhorar a qualidade da água, com o mesmo
custo e ocupando menos espaço. “Se a gente substituísse o
sistema atual pelo de membranas, ele ocuparia uma área de um
quarto da original. Isso é extremamente importante em grandes
centros urbanos, que precisam de espaço”, explica o pesquisador.
Para retirar os hormônios, os remédios e outros compostos
orgânicos da água, a saída seria o uso de carvão ativado. “Nós
temos a tecnologia e as companhias de saneamento precisam
começar a aplicar”, afirma Hespanhol.
Fósforo
Se os fármacos assustam na água tratada, na água não-tratada o
inimigo é o fósforo. Essa substância é um contaminante
importante que é liberado no sistema de esgoto pelas fezes
humanas. Uma vez na água, ele age como um “supernutriente” para
microorganismos e algas na água. Não é a toa que o fósforo é um
dos componentes dos fertilizantes agrícolas. “Sol, calor, luz e
fósforo é o paraíso das algas”, explica Américo Sampaio.
O que sobra após o tratamento do esgoto é liberado nas águas. Se
ocorrer em excesso, as algas se multiplicam perigosamente,
entupindo canos nas represas e, no caso das algas chamadas de
“cianofíceas”, que são tóxicas, colocando em risco a saúde humana.
A lei brasileira exige que as companhias de saneamento monitorem
o nível de fósforo em todas as suas represas e rios. Mas embora
existam métodos para retirar essa substância da água, as
companhias de saneamento do país não os utilizam. “O Brasil faz
apenas as etapas primária e secundária de tratamento de esgoto,
que retiram o lixo sólido e as partículas solúveis
[respectivamente]. A etapa terciária, que elimina o fósforo,
praticamente não existe”, explica Iara Chao, que trabalha na
Sabesp e desenvolveu uma nova forma de retirar essa substância
da água, em seu mestrado feito na Universidade de São Paulo.
Nessa nova técnica, a cientista usa o lodo que é acumulado e
jogado fora após o tratamento de esgoto. Esse lodo é rico em
sulfato de alumínio, que reage com o fósforo e permite que ele
seja retirado. “É um resíduo que é liberado no meio ambiente e
que pode ajudar a eliminar o fósforo nas represas. Com esse
método, a gente resolve dois problemas: remove o fósforo e
recicla o lodo”, afirma Chao.
Marília Juste
G1